
Sudeste: esperas e viagens para acessar um direito reprodutivo previsto em lei
Mesmo nos casos de aborto legal, o procedimento esbarra em demora, julgamentos e negligência. Direito garantido não é acesso garantido
Por Amanda Stabile
16|10|2025
Alterado em 17|10|2025
Moradora de Taboão da Serra (SP), a cerca de 20 km da capital paulista, Isabel* viveu um percurso doloroso no Sistema Único de Saúde (SUS) para conseguir acessar o aborto legal. Mãe de três meninos, ela descobriu na quarta gestação que esperava uma menina — sonho antigo que veio acompanhado de uma suspeita grave.
Primeiro, os médicos disseram apenas que o bebê estava “mal posicionado” durante o ultrassom. Depois, ela leu no pedido de exame uma suspeita não explicada a ela: microcefalia. Veio então um novo exame, duas semanas mais tarde, e o diagnóstico se ampliou: encefalocele, uma má-formação no crânio, incompatível com a vida.
Ela não recebeu acolhimento psicológico. Pessoas a parabenizavam pela barriga. Seu filho pequeno acariciava seu ventre dizendo que a irmã logo chegaria. E, Isabel, sem saber o que dizer, se calava.
O aborto legal no Brasil é descriminalizado em poucos casos — estupro, risco à vida da gestante ou anencefalia fetal (má-formação no cérebro). Mas, mesmo dentro dessas exceções, quem busca o serviço enfrenta dificuldades, falta de orientação e demora para receber o atendimento. O acesso a um atendimento rápido e acolhedor é raro.
>> Esta reportagem faz parte do projeto Aborto e Democracia, da Artigo 19 e AzMina, que investiga as barreiras de acesso aos direitos reprodutivos em cada região do país. A série de cinco reportagens (uma por semana) se soma ao novo Mapa do Aborto Legal, atualizado pela Artigo 19, como ferramenta para garantir o aborto legal no Brasil. As matérias foram produzidas em parceria com os veículos feministas: Paraíba Feminina, Portal Catarinas e Nós, Mulheres da Periferia.
A espera pela autorização
O caminho de Isabel até a interrupção legal foi lento. Foram dois meses de espera até a primeira consulta com um serviço de medicina fetal. E mais algumas semanas até o laudo recomendando a interrupção da gestação. Como a encefalocele não se enquadrava automaticamente nas exceções para o aborto no Brasil (a previsão é para anencefalia), Isabel teve que solicitar uma autorização judicial.
A autorização para Isabel veio quando a gravidez dela já tinha sete meses (30 semanas), e a interrupção não era mais chamada de aborto, mas de parto de natimorto — feto que nasce sem vida. Não houve acolhimento. Não houve pressa. Mas houve julgamento. Depois que a vizinhança soube do procedimento, Isabel passou a receber ligações hostis de grupos religiosos. Ela nunca soube como a informação chegou até eles.
Uma mulher tentou convencê-la a seguir com a gestação dizendo que ela estava “matando um bebê”. Ninguém sabia da encefalocele, do laudo, do desespero, da ausência de alternativas. “Fiquei muito mal, porque ela não sabe o que eu sinto, não pode me julgar”, desabafa.
Além desse percurso cruel, a experiência de Isabel expõe a alta judicialização dos casos de aborto no Brasil. O acesso ao aborto legal no Brasil continua marcado por barreiras estruturais que tornam a lei, muitas vezes, letra morta. A depender da cidade, do tempo de espera e das condições do sistema de saúde, mulheres encontram percursos muito distintos.
Entre 2021 e 2024, 3.859 pessoas realizaram aborto por razões médicas e legais na região Sudeste, segundo o Sistema de Informações Hospitalares do SUS (SIH/SUS). Enquanto isso, entre 2020 e 2025, 28.837 passaram pelo procedimento de aspiração manual intrauterina (AMIU). Os números de AMIU não especificam o tipo de aborto relacionado, o método pode ser aplicado em abortos espontâneos, por exemplo, quando deixam resíduos no útero.
Mas o método mais utilizado nesse período foi a curetagem — raspagem do útero para remover restos do embrião. Só na região Sudeste, foram 247.716 registros. E esse é um procedimento defasado, que a Organização Mundial da Saúde (OMS) não recomenda há mais de 10 anos.
Além do risco à saúde, mulheres que interrompem uma gestação em situações não previstas na legislação brasileira — ou até devido à dificuldade de acessar um aborto legal — também lidam com a insegurança jurídica. Entre 2020 e junho de 2025, 4.291 processos judiciais relacionados ao aborto foram registrados na região Sudeste, cerca de dois por dia (em média), segundo o Painel de Estatísticas do Poder Judiciário.

©Identidade visual: Kath Xapi Puri | Az Mina. Arte: Raíssa Ribeiro | Nós, mulheres da periferia
São Paulo: gestões e projetos antiaborto

©Identidade visual: Kath Xapi Puri | Az Mina. Arte: Raíssa Ribeiro | Nós, mulheres da periferia
De acordo com o Mapa do Aborto Legal, atualizado em 2025 pela ONG Artigo 19, o estado de São Paulo conta com 75 serviços (no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde – CNES) para realização do procedimento. Entretanto, apenas 10 destes tiveram três camadas de confirmação da realização do procedimento (federal, estadual e local), e um dos serviços afirmou, por ligação telefônica, não fazer aborto nas hipóteses legais.
Entre os anos de 2020 e 2025, diversos projetos de lei em tramitação na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (ALESP) evidenciaram um movimento político crescente voltado à restrição da prática do aborto e à proteção jurídica do nascituro — embrião ou feto em desenvolvimento dentro do útero, mas ainda não nascido.

©Identidade visual: Kath Xapi Puri | Az Mina. Arte: Raíssa Ribeiro | Nós, mulheres da periferia
Fechamento de serviços
Nos últimos anos, a cidade de São Paulo (SP) também tem sido palco de propostas legislativas que criam barreiras no acesso ao aborto legal. E, enquanto parlamentares tentam mudar as leis para dificultar ainda mais, na prática, os poucos serviços que existem sofrem cortes, interrupções e falta de apoio.
Foi isso que aconteceu, por exemplo, em março de 2020, quando o Hospital Pérola Byington — um dos principais do país nesse tipo de atendimento — suspendeu o serviço de aborto legal durante a pandemia de Covid-19.
Já em dezembro de 2023, outra unidade de referência em aborto legal, o Hospital Maternidade Vila Nova Cachoeirinha, na zona norte da capital paulista, teve o serviço suspenso pela Secretaria Municipal de Saúde. O hospital era o único na cidade que realizava o procedimento em gestações acima de 22 semanas.
“Quando a cidade de São Paulo, que foi onde teve o primeiro serviço de aborto legal do Brasil, fecha o único lugar onde é possível atender meninas e adolescentes vítimas de violência sexual em gestações mais avançadas, é muito simbólico e muito triste”, pontua a psicóloga Daniela Pedroso, mestre em Saúde Materno-Infantil.
“E aí o que acontece? Crianças e adolescentes vítimas de violência sexual têm que viajar para outras cidades que têm esse serviço de referência”, exemplifica Daniela. Foi o que aconteceu com uma menina de 15 anos, grávida após um estupro, que já estava com o procedimento agendado. O aborto só aconteceu porque ela viajou mais de 2 mil km até Salvador (BA).
As médicas que trabalhavam no serviço de aborto legal do hospital Cachoeirinha também tiveram suas licenças suspensas pelo Conselho Regional de Medicina (Cremesp). Em abril de 2024, o órgão ainda publicou uma resolução proibindo o uso da assistolia fetal acima de 22 semanas de gestação — o procedimento interrompe os batimentos cardíacos do feto antes da retirada dele do útero, e é feito especialmente em gestações mais avançadas. A resolução foi suspensa pelo Supremo Tribunal Federal em maio do mesmo ano.
Até a publicação desta reportagem, o serviço de aborto legal continua suspenso no Hospital Maternidade Vila Nova Cachoeirinha, apesar de decisões judiciais determinarem a retomada do atendimento.
Rio de Janeiro: mais abortos e apenas 4 serviços

©Identidade visual: Kath Xapi Puri | Az Mina. Arte: Raíssa Ribeiro | Nós, mulheres da periferia
Segundo o Mapa do Aborto Legal, o estado do Rio de Janeiro conta com 41 serviços cadastrados para realização do aborto legal. No monitoramento, apenas quatro destes têm mais de uma camada de confirmação da realização do procedimento (federal, estadual e local). Assim como em São Paulo, um dos serviços afirmou, por ligação telefônica, não fazer aborto. O estado é o segundo com o maior número de abortos legais.
Dentre as propostas legislativas contrárias ao aborto que passaram pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ) entre 2020 e 2025 destaca-se a autoria por parlamentares de partidos conservadores (como UNIÃO BRASIL, PL e REPUBLICANOS). O deputado estadual Rodrigo Amorim (UNIÃO BRASIL), autor de quatro das propostas em tramitação.

©Identidade visual: Kath Xapi Puri | Az Mina. Arte: Raíssa Ribeiro | Nós, mulheres da periferia
Cartazes com mensagens antiaborto em unidades de saúde
Na esfera municipal, o Projeto de Lei nº 2486/2023 foi aprovado na Câmara de Vereadores da capital fluminense e sancionado pelo prefeito Eduardo Paes (PSD) como a Lei Municipal 8.936, em 12 de junho de 2025. A norma determinava a obrigatoriedade da fixação de cartazes com mensagens antiaborto em unidades de saúde. Dentre elas: “Você possui o direito de realizar a entrega voluntária do bebê para adoção de forma confidencial.”
Tratam-se de políticas públicas distintas. “Uma coisa é você não querer maternar e levar a gravidez até o fim. Outra é querer interromper porque é seu direito — não é a mesma coisa entregar para adoção”, alerta Roberta Siqueira Mocaiber Dieguez, mestre em Saúde Coletiva pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e especialista em Gênero, Sexualidade e Direitos Humanos pela Fiocruz, contestando essa tentativa de confundir as políticas.
A legislação carioca, no entanto, foi suspensa por decisões judiciais em duas ocasiões distintas. A primeira, em 20 de junho, foi proferida pela juíza Mirela Erbisti, que classificou a norma como uma forma de violência obstétrica. A segunda decisão, em 3 de julho, veio por meio de uma liminar do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ).
Porém, na ALERJ, o PL 5451/2025, de autoria de Rodrigo Amorim (UNIÃO BRASIL), prevê a extensão da afixação dos cartazes críticos ao aborto para todas as unidades de saúde estaduais.
Minas Gerais: maior número de serviços de saúde confirmados

©Identidade visual: Kath Xapi Puri | Az Mina. Arte: Raíssa Ribeiro | Nós, mulheres da periferia
O Mapa do Aborto Legal aponta que Minas Gerais concentra 49 serviços cadastrados para realização do procedimento previsto em lei e conta com altas taxas de confirmação desta informação: 30 serviços estão listados com três níveis de confirmação (federal, estadual e local).
Entre 2020 e 2025, a Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) promoveu a tramitação de propostas legislativas contrárias ao aborto com temas como riscos psicológicos, defesa da vida intrauterina e crítica à atuação institucional em casos de aborto.

©Identidade visual: Kath Xapi Puri | Az Mina. Arte: Raíssa Ribeiro | Nós, mulheres da periferia
As desigualdades regionais em Minas dificultam o acesso ao atendimento emergencial para vítimas de violência sexual, especialmente nas áreas com menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).
Ane Caroline Vieira, mestre em Desenvolvimento Urbano e especialista em Direito Público, afirma que o problema começa logo após a violência. “Quando a mulher não faz uso da contracepção de emergência, ou não recebeu essa profilaxia logo após o episódio de agressão sexual, isso impacta num resultado mais severo, que é a gravidez”.
Objeção de consciência x aborto legal via telessaúde
Além da estrutura precária, há resistência dentro dos próprios serviços de saúde. Em maio de 2025, o Ministério Público de Minas (MPMG) recomendou que o Hospital Regional João Penido, referência para atendimento a vítimas de violência sexual em Juiz de Fora (MG), mantenha exclusivamente médicos sem objeção de consciência — quando profissionais se recusam a realizar o procedimento por motivos pessoais, religiosos ou morais — no serviço de aborto legal. A medida foi motivada pela recusa de alguns profissionais em realizar o procedimento, o que deixava pacientes desassistidas, colocando suas vidas em risco.
Essa situação é recorrente: um estudo publicado na revista Femina em 2020 revelou que 60,6% das equipes médicas credenciadas pela Secretaria de Saúde de Minas Gerais entre 2018 e 2019 se recusavam a realizar abortos legais por objeção de consciência, com motivos predominantemente religiosos.
“Tem profissionais que se recusam a fazer o procedimento, mesmo em hospitais de referência — isso não é objeção de consciência, é negligência institucional”, aponta Cláudia Medeiros de Castro, mestre em Psicologia Social e doutora em Ciências. Para ela, quando o acesso ao aborto legal se torna incerto e desigual, o Estado falha com as mulheres, especialmente as mais vulneráveis.
Nesse cenário desafiador, destaca-se o trabalho do Núcleo de Atenção Integral às Vítimas de Agressão Sexual (Nuavidas), em Uberlândia (MG), coordenado pela médica e pesquisadora Helena Paro. Em 2021, durante a pandemia, ela criou o primeiro serviço público de telemedicina — atendimento médico à distância — para aborto legal no Brasil.
Desde o lançamento da cartilha “Aborto legal via telessaúde” (2021), a médica vem sofrendo retaliações que vão de ataques virtuais a ações políticas e um processo ético-profissional no Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais (CRM-MG), que pode levar à perda de sua licença médica.
Apesar das pressões, o serviço continua ativo. Por outro lado, na Assembleia Legislativa mineira, o PL 2802/2021, de autoria de Bruno Engler (PRTB), que proíbe a realização de qualquer procedimento abortivo por telemedicina no Estado, segue em tramitação.
Espírito Santo: fragilidade da rede de saúde faz menina viajar

©Identidade visual: Kath Xapi Puri | Az Mina. Arte: Raíssa Ribeiro | Nós, mulheres da periferia
Com 175 abortos legais registrados entre 2021 e 2024, o Espírito Santo apresenta os menores números do Sudeste. Em 2024, 72% desses procedimentos foram realizados em mulheres negras. Segundo o Mapa do Aborto Legal, o estado é o que menos conta com serviços na região, tendo apenas sete cadastrados para a realização do procedimento. Destes, somente dois possuem mais de um nível de confirmação (federal e local).
No Legislativo estadual do Espírito Santo, o tema aborto é recorrente. A Assembleia Legislativa do Espírito Santo (ALES) recebeu, entre 2020 e 2025, diversas propostas com foco na regulação e restrição do aborto. A maioria dos projetos ainda em tramitação é assinada por parlamentares do Partido Liberal (PL), sendo o deputado estadual Lucas Polese (PL) autor de três das propostas.

©Identidade visual: Kath Xapi Puri | Az Mina. Arte: Raíssa Ribeiro | Nós, mulheres da periferia
A fragilidade da rede de saúde para o aborto no estado capixaba ficou evidente em 2020, com o caso de uma menina de dez anos, do município de São Mateus (ES). Ao ser internada com dores abdominais, foi constatado que ela estava grávida de cerca de três meses, fruto de estupros sucessivos cometidos pelo tio. Após a denúncia, a criança foi levada para um abrigo pelo Conselho Tutelar, enquanto aguardava decisões judiciais.
Nesses casos, a justiça entra como mais uma barreira. “Quanto mais tempo você leva para garantir o acesso ao aborto, mais custos emocionais e mais complexo fica o procedimento”, alerta Roberta Siqueira Mocaiber Dieguez, mestre em Saúde Coletiva e especialista em Gênero, Sexualidade e Direitos Humanos.
Em Vitória, a menina foi internada no Hospital Universitário Cassiano Antonio Moraes (Hucam), mas a equipe do Programa de Atendimento às Vítimas de Violência Sexual (Pavivis) se recusou a realizar o procedimento, sob a alegação de que a idade gestacional — 22 semanas e quatro dias — não estaria coberta pela legislação. Pela lei brasileira, o aborto em casos de violência sexual é permitido em qualquer tempo da gestação.
O juiz da Vara da Infância e da Juventude autorizou a interrupção com base em uma norma do Ministério da Saúde que apontava que mesmo gestações mais avançadas podem ser legalmente interrompidas. Ainda assim, nenhum hospital do Espírito Santo se dispôs a realizar o aborto. A menina teve que ser transferida para uma unidade de referência em Recife (PE), onde finalmente teve acesso ao procedimento.
*Nome fictício para preservar identidade da entrevistada.
Dos hospitais aos rituais de cuidado: os usos da placenta no Brasil
Ainda em 2025, o SUS deve incorporar o transplante de membrana amniótica para queimaduras; fora dos hospitais, a placenta aparece em práticas privadas restritas a quem pode pagar e em saberes tradicionais preservados por parteiras e comunidades